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ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 489-505, set./dez. 2018.
http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
O cálculo de Maria: contribuições de um
jogo interdisciplinar para o
desenvolvimento da cidadania
RESUMO
Céres de Oliveira Jendreieck
ceres_oj@yahool.com.br
orcid.org/0000-0001-9733-4581
Prefeitura Municipal de Curitiba, Curitiba,
Paraná, Brasil
Ettiène Guérios
ettiene@ufpr.br
orcid.org/0000-0001-5451-9957
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Curitiba, Paraná, Brasil
O presente artigo tem por finalidade apresentar um recorte de uma pesquisa que investigou
contribuições que um jogo educativo interdisciplinar proporcionou para o desenvolvimento
de habilidades das disciplinas de matemática e geografia de alunos do ano do Ensino
Fundamental. Os principais referenciais teóricos utilizados foram Grando (2000, 2004),
Machado (2001, 2006) e Moura (1992, 2010) no que tange a dimensão lúdica. A pesquisa
teve abordagem qualitativa e de intervenção. Os participantes foram 8 alunos matriculados
no ano do Ensino Fundamental. As pesquisadoras criaram um jogo interdisciplinar que
foi validado por uma equipe de profissionais da educação. Para a coleta de dados realizou-
se uma atividade inicial, acompanhada de cinco partidas seguidas de cinco atividades
diferentes com foco na resolução de situações-problema advindas do jogo e uma atividade
final. Foi realizada uma observação sistemática in loco com posterior produção de
narrativas, filmagem das partidas e das atividades após o jogo e registros das resoluções das
atividades inicial e final. Para análise foi criado um método próprio para esta pesquisa,
realizando-se uma triangulação dos instrumentos. Neste artigo será apresentada uma
fração dos resultados obtidos e suas discussões. Maria é o nome fictício de uma das
participantes do jogo sendo a sua participação o foco desse artigo. Conclui-se que o jogo,
com sua característica interdisciplinar, pode auxiliar professores nas aulas de matemática e
de geografia, além de aliar aprendizagem matemática à aprendizagem de valores cidadãos,
constituindo-se um produtivo recurso Educativo.
PALAVRAS-CHAVE: Interdisciplinaridade. Jogo. Ensino de matemática. Cidadania e
matemática.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo é proveniente de uma pesquisa de mestrado realizada no
Programa de Pós-graduação em Educação: Teoria e Prática de Ensino da
Universidade Federal do Paraná. O objetivo da pesquisa foi identificar possíveis
contribuições que um jogo educativo interdisciplinar pode proporcionar para o
desenvolvimento de habilidades das disciplinas de matemática e geografia em
alunos de 3º ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal de Curitiba.
Durante o desenvolvimento da pesquisa, um dos aspectos que mais chamou
nossa atenção foi a vivência de valores e cidadania na experiência com o jogo em
atividades voltadas ao desenvolvimento de habilidades em matemática e em
geografia. Por isso, no presente artigo apresentamos o que identificamos acerca
de contribuições do jogo para a aprendizagem da cidadania e vivência de
liberdade, focalizando as análises especificamente na experiência interdisciplinar
vivenciada por uma das participantes, que recebeu o nome fictício de Maria.
Iniciamos abordando brevemente sobre nosso entendimento sobre cidadania e
liberdade e o papel da escola a partir deste entendimento.
Adotamos como pressuposto que os termos “direitose “deveres” constituem
um binômio indissolúvel para a aprendizagem da cidadania e que nos anos iniciais
do Ensino Fundamental as crianças podem vivenciar situações que apontem para
esta aprendizagem. Nesse sentido, nos aproximamos de Machado (2001) para
quem a ideia de cidadania não pode ficar restrita a ideia de ter direitos, pois
significaria uma “limitação da formação do cidadão”, restringindo seu significado
político e filosófico. Ele defende que “mesmo em países onde os direitos humanos
não costumam ser violados, a necessidade da formação do cidadão permanece
viva, relacionando-se com a semeadura de valores e articulação entre os projetos
individuais e coletivos”. (MACHADO, 2001, p. 95)
Concordando com Machado (2001), entendemos que ser cidadão envolve as
questões relativas aos direitos humanos e também aos direitos políticos. Isto quer
dizer que além de preocupar-se com seus próprios direitos, o cidadão preocupa-se
com as decisões coletivas e age em benefício deste coletivo. Para ser realmente
cidadão, é necessário ter vontade, capacidade e possibilidade de envolver-se com
decisões políticas.
Machado (2001, p. 106) propõe uma noção de cidadania que “transcenda o
estatuto de uma postulação de direitos humanos” e inclua a participação ativa no
tecido social, assumindo responsabilidades relativamente aos interesses e ao
destino de toda a coletividade”.
Múltiplos são os instrumentos para realização plena dessa cidadania ativa: a
“alfabetização” relativamente aos dois sistemas básicos de representação da
realidade - a língua materna e a matemática, condição de possibilidade do
conhecimento em todas as áreas; a participação do processo político,
incluindo-se o direito de votar e ser votado; a participação da vida econômica,
incluindo-se o desempenho de uma atividade produtiva e o pagamento de
impostos; e, naturalmente, o conhecimento de todos os direitos a que todo
ser humano faz jus pelo simples fato de estar vivo. (Idem, p.107).
Neste extrato, Machado nos mostra a importância da escola como partícipe
na formação do cidadão, pois é ela que proporciona institucionalmente a
aprendizagem da língua e da matemática, assim como, conhecimento dos direitos,
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compreensão da vida política e condições para o desempenho de atividade
econômica.
No entanto, segundo nossa compreensão, isto não basta para ser cidadão. O
cidadão precisa, também, ser dotado de liberdade. Morin diz que liberdade
É a possibilidade de escolha entre diversas alternativas. Bem, a liberdade
supõe duas condições. Em primeiro lugar, uma condição interna, a
capacidade cerebral, mental, intelectual necessária para considerar uma
situação e poder estabelecer suas escolhas, suas apostas. Em segundo lugar,
as condições externas nas quais essas escolhas são possíveis. [...] podemos,
assim, observar diferentes tipos, diferentes graus de liberdade, segundo
tenhamos possibilidades de escolha mais ou menos amplas e mais ou menos
básicas, que permitam gozar de maior grau de liberdade. (MORIN, 1996, p.
53).
Consideramos que o papel da escola na formação do cidadão é também
proporcionar estas condições para a liberdade. A primeira, desenvolvendo
capacidades cerebrais, mentais e intelectuais, por meio da aprendizagem de
conteúdos e habilidades de resolução de situações-problema utilizando
pensamento interdisciplinar. Ou seja, proporcionando as condições intelectuais
necessárias para a compreensão e resolução das situações que se lhes apresentem.
E a segunda, proporcionando espaços de criação, de cidadania e situações em que
os alunos possam exercer sua liberdade de escolha.
Compreendemos o jogo, portanto, como um instrumento que pode ser útil
para proporcionar estas condições de liberdade e cidadania, pois desenvolve
capacidades cerebrais, mentais e intelectuais pelo uso da razão para criação de
estratégias para solucionar situações do jogo buscando vencer.
Além disso, o jogo é um espaço de liberdade de escolha, apesar de ser
necessário seguir regras quando se está jogando. O jogo permite a tomada de
decisão a cada jogada, pois o jogador faz uma escolha ao executar uma ou outra
ação. É possível também avaliar os resultados dessas escolhas e, se desejar, mudar
de estratégia na sequência das jogadas.
O jogo também simula a vida social, na medida em que se constrói na relação
entre os jogadores. Essa relação pode ser ora competitiva, ora colaborativa. Mas é
também um compartilhar de objetivos, ideias, ações, prazer, criação, emoção,
desenvolvimento, superação (de si mesmo e do outro).
No jogo, as relações entre os participantes são permeadas por valores, como
respeito, competitividade, colaboração. E banhadas de emoções, como desejo de
vencer, ansiedade, prazer e desprazer. Em meio a esses valores e emoções o jogo
acontece numa situação de liberdade na qual é possível criação e escolha entre
diversas possibilidades para tomada de decisão. Assim o jogo permite ao aluno
vivenciar uma situação de liberdade, limitada pelas suas regras e pela ação dos
adversários. É também uma situação de responsabilidade, pois as decisões no jogo
terão consequências, como a vitória ou a derrota.
Partindo do que foi colocado até aqui, podemos considerar que o jogo tem um
papel importante na formação individual e na vida social dos alunos,
consequentemente, na formação do cidadão. Ao jogar, a pessoa se humaniza,
exercendo a liberdade presente nas possibilidades do jogo (de criação, de
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invenção, de estratégias) e a limitação imposta pelas regras, que precisam ser
aceitas e respeitadas, assim, simulando também a liberdade na vida real.
Considerando o jogo como um instrumento pedagógico interessante para a
formação do cidadão, tivemos a ideia de criar um jogo educativo que auxiliasse no
desenvolvimento de habilidades das disciplinas de geografia e matemática de
alunos do Ensino Fundamental, ao mesmo tempo em que se constituísse em
possibilidade de desenvolvimento de valores para o exercício da cidadania. Após
sua criação, o implementamos em turmas do ano do Ensino Fundamental e
passamos a investigar suas possíveis contribuições para o desenvolvimento de
habilidades em disciplinas de matemática e geografia.
A seguir, apresentamos o método utilizado nesta pesquisa. No subitem “O
jogo”, fazemos uma breve apresentação do jogo e seus objetivos educativos. No
subitem “Resultados e discussão”, apresentamos um extrato dos dados coletados
e suas análises. Nas “Considerações Finais” buscamos demonstrar o que nos
propusemos neste artigo: as contribuições do referido jogo educativo
interdisciplinar para a vivência de valores e cidadania na experiência com
atividades voltadas ao desenvolvimento de habilidades em matemática e em
geografia próprias do 3º ano do Ensino Fundamental.
MÉTODO DE PESQUISA
A pesquisa foi conduzida a partir do desenvolvimento de ações interventivas
produtoras de mudanças no ambiente de sala de aula, mudanças a serem então
submetidas à análise. Assim, a pesquisa se amparou em abordagem qualitativa e
de cunho interventivo. Damiani (2012) explica que as pesquisas de intervenção
são pesquisas aplicadas que partem de uma intenção de mudança ou inovação que
se realiza por meio de práticas a serem analisadas. Estas pesquisas trabalham com
dados criados e envolvem uma avaliação rigorosa e sistemática dos efeitos das
práticas, ou seja, indo além das descrições e chegando numa análise mais
aprofundada. Elas têm como característica buscar “contribuir para o avanço do
conhecimento sobre os processos de ensino/aprendizagem neles envolvidos”.
(DAMIANI, 2012, p. 3)
Nesta pesquisa, as práticas de intervenção foram as partidas do jogo, as
atividades propostas após as partidas e a ação didática, ensinando aos
participantes as regras do jogo e como jogar, incentivando-os a pensar sobre as
opções de jogadas, a criar estratégias e também a auxiliar na identificação e
correção de erros durante o jogo.
Os participantes da pesquisa foram 8 alunos matriculados no 3º ano do Ensino
Fundamental de uma escola municipal de Curitiba que foram organizados em dois
grupos para a realização das partidas do jogo.
O processo de coleta de dados foi realizado por meio de observação
sistemática in loco registrada em diário, filmagem das partidas e de atividades após
cada partida e registros de uma, atividade inicial e outra final que tiveram a
finalidade de produzir dados norteadores para a análise do conjunto dos demais
dados.
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Com base no referencial teórico e no objetivo da pesquisa, criamos focos
prévios de investigação, que foram: interdisciplinaridade entre geografia e
matemática; cidadania; estratégias cognitivas; resolução de problemas de jogo;
antecipação no jogo.
Para análise, foi realizada uma triangulação entre os dados provenientes dos
diferentes instrumentos. Os focos de investigação permeiam as reflexões de uma
maneira integrada.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
Federal do Paraná em 03 de junho de 2016, através do parecer nº 1.573.515.
O JOGO
Trata-se de um jogo de tabuleiro que representa ruas de uma cidade fictícia.
Nos pontos extremos do tabuleiro estão as saídas Norte, Sul, Leste e Oeste
representando os pontos cardeais. No tabuleiro há uma bússola e pontos de
referência. Compõem o material do jogo: um dado cujos lados são quantidades,
um dado cujos lados são orientações para movimentações no tabuleiro a partir de
noções topológicas e lateralidade, quatro carrinhos e oitenta e quatro “cartas
estrelas”. Para iniciar o jogo, os jogadores devem usar a bússola para alinhar o
tabuleiro na direção Norte-Sul e organizar as cartas estrela de tal modo que cartas
iguais fiquem em uma mesma pilha, e estas fiquem lado a lado. O objetivo do jogo
é andar pelas ruas do tabuleiro com o carrinho e entrar no local denominado
Estacionamento, passando, no trajeto, por diferentes pontos de referência. Ao
passar por cada ponto de referência o jogador ganha uma carta estrela. Para
vencer o jogo é necessário coletar 10 cartas diferentes e então entrar no
estacionamento. (JENDREIECK, 2017).
Para jogar, cada aluno, na sua vez, lançará o dado das quantidades. Este dado
indicará o número de casas que devem ser percorridos pelas ruas do tabuleiro. É
permitido andar apenas sobre as ruas e na rotatória. O jogador poderá escolher a
direção que deseja seguir com a quantidade de casas que obteve com o dado. O
fato de precisar de 10 cartas estrela de referência para entrar no Estacionamento
o obriga a criar estratégias para escolher os caminhos que vai seguir com o número
de casas que poderá se deslocar no tabuleiro com o resultado do dado de
quantidades. Os jogadores terão que criar estratégias para se deslocarem no
tabuleiro, visto que podem chegar ao estacionamento sem terem obtido as dez
cartas estrelas diferentes para poderem entrar, o que os obrigará a permanecer
jogando até obtê-las, para então se dirigirem para a entrada do estacionamento,
administrando os resultados do dado de quantidades. Ou podem obter as 10 cartas
e estarem longe do estacionamento. Nesse caso, devem continuar jogando, até
conseguir entrar no estacionamento.
Durante o percurso, cada aluno deverá estar atento às indicações do tabuleiro.
Quando passar por algum símbolo ou sinal de trânsito ou trecho da rua pintado de
cor diferente, deverá verificar na Legenda a orientação a ser seguida.
Como dissemos, este jogo educativo foi criado com objetivo de auxiliar no
desenvolvimento de habilidades das disciplinas de geografia e matemática. As
habilidades pretendidas com o jogo foram: localizar-se no espaço, utilizar noções
topológicas, utilizar noções de lateralidade, compreender representações de
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espaços urbanos, usar adequadamente a bússola, movimentar-se respeitando
regras de organização do espaço, usar a Rosa dos Ventos e os pontos cardeais, usar
legenda, usar cálculo mental e outras estratégias de resolução dos problemas
matemáticos. As referências para a definição por estas habilidades foram os
Cadernos de Alfabetização Matemática do PNAIC (BRASIL, 2014), o Plano
Curricular Preliminar de Curitiba (CURITIBA, 2016c), vigente durante o período de
criação do jogo, e o documento “Elementos Conceituais e Metodológicos para a
Definição dos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento do Ciclo de
Alfabetização (1º, 2º e 3º anos) do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2012).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Neste subitem, nos detemos a apresentar movimentos de aprendizagem de
um dos participantes da pesquisa. “Maria” é a participante protagonista. “Thomas”
e “Carla” são participantes coadjuvantes. A pesquisadora que aplicou a
intervenção é representada pelo pronome pessoal do caso reto da primeira pessoa
do singular, “Eu”. Apresentamos em quadros algumas descrições e diálogos.
No decorrer das partidas os alunos colaboravam uns com os outros. Todos
aprendiam nessa interação permanente e com a ação didática da pesquisadora.
Olhemos para Maria em momentos específicos por meio de trechos do diário da
pesquisadora durante a intervenção com o jogo educativo e de episódios das
partidas.
Quadro 1 Trecho do diário
Iniciamos pelo momento em que perguntei “No Pare Roxo, o que tem que fazer, Maria?”
Então ela pegou a legenda. Em seguida percebi que ela contou errado a quantidade de
quadrados e solicitei que ela refizesse a contagem.
Fonte: JENDREIECK, 2017.
Contar errado não significa que Maria não tenha a habilidade de contar,
significa que a habilidade de contar está em desenvolvimento e nesse processo,
ora acerta, ora erra. Quanto mais ela desenvolver esta habilidade maior será a
quantidade de acertos e menor a quantidade de erros. Portanto, as situações que
envolvem a contagem no jogo contribuem para o desenvolvimento da habilidade
de contar e outras habilidades na forma de um exercício por meio do qual,
repetindo-se o uso dessas habilidades, o aluno as aprimora.
O jogo criado também apresenta oportunidades para a ação da didática da
pesquisadora, conforme o episódio a seguir.
Quadro 2 Episódio da primeira partida
Thomas estava na Via Rápida e tirou 4. Ele andou quatro e parou. Pediu uma carta para
Carla. Enquanto isso eu disse “Lembre-se que é o dobro que você tem que andar!”
Então Maria disse “Mais dois, Thomas!”
Ele não andou. Maria disse novamente “Mais dois, Thomas! É o dobro!”
Eu falei “Maria, lembre-se que dobro não é mais dois, é duas vezes a mesma quantidade.
Então se era 4…” e não terminei a frase esperando que um deles fizesse o cálculo e
terminasse.
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Thomas disse “8” e andou com seu carrinho. Maria exclamou “Ah é!”
Na rodada seguinte ele continuava na Via Rápida. Tirou 3 no dado e falou “3! Então vou ter
que andar 6!”
Alguns momentos mais tarde Maria estava no Pare Vermelho, tirou 1 no dado e por isso
acabou tendo que entrar na Via Rápida. Na rodada seguinte tirou 6 e leu a legenda.
Expliquei que ela precisava andar o dobro de 6. Perguntei “O que é dobro? Você sabe?”
Ela respondeu perguntando “Andar mais 1?”
Eu disse “Não. É como se você tivesse jogado duas vezes o seis, tá?”
Ela tentou calcular e disse “Eu não lembro quanto dá.”
Perguntei “De que jeito você pode descobrir, então?”
Ela respondeu “Não sei.”
Expliquei “O dobro de 6 é duas vezes o número 6. Como é que a gente faz esse cálculo?”
Ela respondeu perguntando “6 mais 6?”
Respondi “Sim”
Então ela perguntou “6 + 6 dá 8?”
Eu disse “Você pode contar nos dedos, ou contar no dado e mais nos dedos.”
Então ela colocou 6 nos dedos e contou duas vezes, respondendo “12.”
Fonte: JENDREIECK, 2017.
Neste episódio, o jogo proporciona, por meio da ludicidade, uma situação-
problema que, para sua resolução, é necessário realizar o cálculo do dobro. Maria
está acompanhando a jogada de Thomas e, enquanto tenta ajudá-lo, comete um
erro quando diz “Mais 2, Thomas!” e acrescenta “Mais 2! É o dobro!” Nesta fala
ela apresenta um problema com o conceito de dobro, pois ela pensa que dobro
significa adição de dois. Para Maria o dobro de 4 é resultado da operação 4+2.
Essa situação, que surgiu por meio do jogo, gerou oportunidade para a ação
didática da pesquisadora, que disse: “Maria, lembre-se que dobro não é mais dois,
é duas vezes a mesma quantidade. Então se era quatro...” E, nessa ação didática,
falou o conceito de dobro sem dar a resposta e sim oportunizando que Maria ou
outro participante realizassem o cálculo correto.
Imediatamente Thomas completou dizendo 8”. Sua resposta rápida e sem
utilização de contagem demonstra que ele realizou o cálculo mentalmente.
A importância da habilidade de cálculo mental é apontada por vários autores
(Parra, 1996; Hope, 1986; Mendonça, Lellis, 1989; Taton apud Udina Abelló,
1992) como sendo necessária para uma significativa compreensão do número
e de suas propriedades (domínio estrutural numérico) estabelecimento de
estimativas e para o uso prático nas atividades cotidianas. Além disso, a
habilidade com cálculo mental pode fornecer notável contribuição à
aprendizagem de conceitos matemáticos (relações / operações /
regularidades / álgebra / proporcionalidade) e ao desenvolvimento da
aritmética. (GRANDO, 2004, p.39-40).
Concordamos com Grando (2004) quando defende a importância do cálculo
mental, pois além de ser útil em situações práticas cotidianas, também favorece a
imaginação e a memorização, pois o uso do cálculo mental é uma atitude de
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autonomia no raciocínio matemático, uma vez que ultrapassa o algoritmo
ensinado comumente na escola e permite solucionar problemas de maneira
criativa.
Alguns momentos mais tarde, Maria entrou na Via Rápida, então jogou o dado
e tirou 6. Ela precisava consultar a legenda para saber qual a orientação para andar
na Via Rápida. Esta habilidade (de reconhecer e utilizar símbolos na representação
e organização do espaço) está prevista no Currículo do Ensino Fundamental de
Curitiba (2016), na forma de um dos objetivos da disciplina de Geografia.
Lendo a legenda, Maria soube que seria necessário andar o dobro do valor
retirado no dado. Maria, após a situação do erro anterior, percebeu que dobro o
é adição de dois, porém ainda não compreendeu o que é dobro. Ela arrisca
respondendo com uma pergunta “Andar mais um?”.
Surge novamente a oportunidade da ação didática. A pesquisadora buscou
ajudá-la a compreender o conceito de dobro e deixou que ela realizasse o cálculo
dizendo: “É como se você tivesse jogado duas vezes o seis, tá?”. Ela, por ainda não
compreender, disse que não se lembrava. A pesquisadora tentou explicar
novamente dizendo: “O dobro de seis é duas vezes o número seis. Como a gente
faz esse cálculo?
Então Maria pareceu ter compreendido o conceito e uma forma de calcular o
dobro, então respondeu perguntando “6 mais 6?” E, após a confirmação ela tenta
uma resposta dizendo “6 mais 6 dá 8?”
Questionamo-nos sobre o porquê de Maria dizer isso se ela tem condições de
realizar esse cálculo contando nos dedos ou de outras formas. Pensamos que ela
pode ter dado uma resposta qualquer para sair rápido da situação ou pode ter
ficado com vergonha de contar nos dedos que seus colegas realizam cálculo
mental constantemente, ou ainda, que por ela não compreender o cálculo mental,
acha que seus colegas acertam arriscando resultados. Após essa resposta de Maria
a pesquisadora percebeu que teria que dizer a ela como realizar o cálculo e então
explicou: “Você pode contar nos dedos ou no dado e mais nos dedos.” Ela colocou
6 nos dedos e contou duas vezes, chegando ao resultado 12.
Nas intervenções com Maria e com outros participantes a pesquisadora
procurou agir por meio de questionamentos buscando não anular a ação cognitiva
da criança, mas sim incentivá-la.
A habilidade de resolver problemas realizando cálculos está contemplada no
Currículo do Ensino Fundamental de Curitiba na forma de um dos objetivos em
Matemática: Resolver e elaborar problemas que envolvam situações aditivas e
multiplicativas.” (CURITIBA, 2016a, p. 36).
A dificuldade de Maria com as habilidades de Geografia e Matemática é
perceptível quando Maria tenta copiar as respostas de Thomas na atividade inicial.
Além disso, Maria confundia seu carrinho com o dos colegas e se esquecia de
algumas regras. Numa das partidas ela estava ganhando e não sabia. Ela tinha
10 cartas, podia entrar no estacionamento e não entrou. A pesquisadora teve que
orientá-la a entrar.
Tais dificuldades são evidenciadas durante as partidas do jogo e podem ser
percebidas como no trecho a seguir, retirado da terceira partida:
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 489-505, set./dez. 2018.
Quadro 3 Trecho do diário
Maria ainda esquecia algumas regras e, quando os colegas estavam distraídos e não lhe
ajudaram eu perguntei “No Pare Roxo, o que tem que fazer, Maria?” Então ela pegou a
legenda. Em seguida percebi que ela contou errado a quantidade de quadrados e solicitei
que ela refizesse a contagem.
Fonte: JENDREIECK, 2017.
No entanto, um movimento de superação de algumas dificuldades pode ser
reconhecido por meio das narrativas do diário quando, nas partidas finais, ela
parou de confundir seu carrinho com o dos colegas (o que foi percebido e
comentado por Carla), mostrou opções de trajetos para os colegas e realizou
cálculos com mais sucesso.
Apresentamos a seguir outros episódios em que Maria precisou realizar
cálculos.
Quadro 4 Episódio da primeira partida
Maria estava no Pare Roxo. Ela tirou 4 e leu a legenda em voz baixa. Pegou seu carrinho,
mas não andou. Vendo dúvida em sua expressão, perguntei “Quanto você tirou?”
Ela disse “4”. Então Thomas falou “Mais 4, 8!”
Ela olhou para ele e disse “Mais 3!”
ele disse “Então é 7!” E ela percorreu 7 com seu carrinho.
Fonte: JENDREIECK, 2017.
Este episódio mostra que Maria compreendeu a orientação da legenda e sabia
que devia realizar a adição de 3, no entanto não realizou o cálculo. O colega
Thomas realizou-o para ela.
Quadro 5 Episódio da segunda partida
Maria jogou o dado e andou 4. Isadora falou “Você estava no Pare! Tem que ler!”
Maria volta com seu carrinho e lê a legenda que diz para somar 3 ao valor retirado. Isadora
já pegou o dado e falou “Você já tinha tirado quatro!”
Então eu disse “Só soma mais 3, Maria!”
Ela pensa e responde “7”. Então anda 7 com seu carrinho.
Fonte: JENDREIECK (2017).
Este episódio mostra que Maria conseguiu realizar o cálculo de adição,
chegando à resposta correta. As ações de Maria mostram o processo da
aprendizagem. O jogo exige um movimento cognitivo intenso e a aprendizagem
não ocorre de uma hora para a outra. Nas últimas partidas com o jogo ela
demonstrou o início de uma mudança.
Concordamos com Mrech (2010, p.124) quando afirma que é preciso que o
professor também “altere a sua forma de conceber o processo ensino-
aprendizagem. Ele não é um processo linear e contínuo que se encaminha numa
única direção, mas, sim, multifacetado, apresentando paradas, saltos,
transformações bruscas, etc.”
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 489-505, set./dez. 2018.
Essa transformação na concepção de ensino-aprendizagem implica numa
compreensão de que a resposta sobre um conteúdo ensinado nem sempre pode
ser objetiva como “aprendeu” ou “não aprendeu”. Pode ser um caminho de idas e
vindas, em que o aluno ora usa um procedimento, ora usa outro, ora acerta, ora
erra, ora se corrige, ora permanece no erro. É considerar o ensino-aprendizagem
como processo de evolução, conforme o conceito apresentado por Guérios (2002),
quando diz:
[...] com o termo evoluir queremos nos referir a um caminhar que considera
o ir e o vir, o avançar e o retroceder, o errar e o acertar. Acatamos a ideia de
evolução como movimento, não significando progresso ou melhoria passível
de ser expressa em um resultado absoluto, quantificável e imutável. Significa,
antes, caminhar desenvolvendo ou transformando ideias, crescer, expandir-
se, transformar-se e provocar modificações. (GUÉRIOS, 2002, p. 7).
Maria demonstra que está no processo de aprendizagem, realizando
movimentos cognitivos, fazendo tentativas, experimentando, agindo no jogo,
desenvolvendo e transformando ideias e que nesse processo seu pensamento está
evoluindo.
Quadro 6 Episódio da terceira partida
Maria estava no Pare Roxo. Ela leu a legenda e retirou 5 no dado. Então falou “5, 6, 7, é 7!”
Eu perguntei “É 5 mais quanto?”
Maria respondeu “Mais três”, então levantou três dedos na mão e contou em voz alta “6,
7, 8”.
Em seguida, Thomas falou “5 mais 3 é 8!” E ela andou oito.
Fonte: JENDREIECK, 2017.
Maria realizou a adição, porém iniciou a adição no quinto elemento, contando
“5, 6, 7”, em vez de iniciar a partir do quinto elemento. Ao ser questionada, Maria
refez o cálculo conseguindo corrigir-se sozinha realizando a contagem nos dedos e
acertando a resposta.
Grando (2004, p. 81) analisa o erro no jogo e mostra que surge como fonte
de informação estimulando cada um a analisar a sua própria produção
compreendendo seus erros e buscando corrigi-los”, ou seja, o jogo pode levar o
aluno a uma postura diante do erro no jogo diferente da postura que tem nas
aulas, pois nelas, muitas vezes, está desmotivado para avaliar e refazer sua
produção.
Essa postura diante do erro foi percebida em Maria neste episódio, pois ela
erra e, após o questionamento da pesquisadora, se mostra motivada para refazer
o cálculo e corrigir seu erro.
A mudança na ação de Maria na resolução do cálculo e na sua motivação para
aprender fica ainda mais evidente no episódio a seguir:
Quadro 7 Episódio da quarta partida
Maria está no Pare Roxo. Isadora falou “Ah, você vai ter que fazer mais três para frente!”
Maria jogou o dado, retirou 6 e disse “Deixa eu pensar.”
Ela estava com as mãos para baixo da mesa então não pude ver se usou os dedos para
contar ou não. Em seguida ela disse “9 eu vou ter que andar”.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 489-505, set./dez. 2018.
Maria andou e pegou as cartas estrela. Então contou seu total de cartas e disse “Eu tenho
nove! Mais um só!”
Fonte: JENDREIECK (2017).
Os episódios anteriormente apresentados que envolvem o cálculo de Maria
demonstram que houve aprendizagem e desenvolvimento da habilidade de
realizar cálculos aditivos e multiplicativos.
Quando Maria disse “Deixa eu pensar” ela estava se posicionando de uma
maneira como se dissesse para os colegas não dizerem a resposta e darem a ela o
tempo de que precisava para realizar o cálculo. Isso demonstra mais segurança por
parte da Maria, pois agora ela sabe que pode realizar sozinha o cálculo e acertar a
resposta. Ela abre mão da ação de chutar ou de copiar a resposta dos colegas
(como foi demonstrado nos trechos do diário e episódios) e opta, com autonomia,
por realizar o cálculo.
Esse é um exemplo de como esse jogo criado pode ser gerador de cidadania
por meio do desenvolvimento de habilidades, pois o indivíduo que as desenvolve
torna-se menos dependente do outro e mais dono de si, agindo no mundo com
autonomia e maior liberdade de escolha.
O desenvolvimento da autonomia decorre, entre outras coisas, da
possibilidade de decidir, entre opções, em cada situação, aquela que for
julgada pelo sujeito a mais adequada. Para tanto o sujeito precisa dispor de
um leque amplo de opções que, como vimos, depende de poder defrontar-se
com situações diversificadas, e, de preferência, perceptivelmente
diversificadas. pode ser autônomo aquele que pode escolher. pode
decidir o melhor aquele que puder escolher entre possíveis de qualidade. Só
pode ter opções aquele que formou sua base de conhecimento de forma
diversificada. Aquele que não tem como optar tem que ficar com os modelos
impostos. (FREIRE, 2005, p.105).
As possibilidades de ação de Maria no jogo se ampliam a partir do momento
em que, dominando o cálculo, ela tem a opção de realizá-lo. Ou seja, o
conhecimento e a habilidade proporcionam um aumento da liberdade para Maria,
pois ela passa a ter mais uma alternativa de escolha: a de realizar o cálculo sozinha,
ou, de acordo com o que diz Freire no trecho citado, uma opção possível de
qualidade. Quando ela não tinha como optar pela ausência de conhecimento e da
habilidade necessária, ficava dependente da resolução dos outros.
Depois de aprender o cálculo e se sentir segura ela pode escolher entre
realizar o cálculo, ou chutar, ou esperar que os demais dissessem a resposta. Na
ausência dessa habilidade, suas únicas alternativas eram chutar o