ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 271 -291, mai./ago. 2018.
Na fala inicial de Piper: “Eu nunca transportei drogas, só dinheiro”,
destacamos, de acordo com a AD, a noção de interdiscurso. Quando ela se refere
ao fato de ter cometido um crime, já o menciona de forma a amenizar seu relato,
pois, talvez, o que ela esperava como resposta de seus familiares seria uma reação
um tanto horrorizada, devido à posição social ocupada por uma pessoa envolvida
com o tráfico de drogas. O interdiscurso aqui se liga com a memória discursiva,
pois o interdiscurso só existe porque o que estamos dizendo faz sentido por ter
sido dito antes. Em outras palavras, Piper se colocou no lugar de quem a ouvia,
isso, na AD, é chamado de mecanismo de antecipação, quando o sujeito se coloca
na posição de seu interlocutor, ou seja, a fala é realizada de tal forma por conta de
expectativas prévias. Nesse caso, a família de Piper é de classe alta e tradicional,
então ela traz seu discurso de forma a amenizar o crime cometido, pois sabe que
o traficar é algo errado legalmente, e também socialmente (memória discursiva),
dizendo que apenas transportou dinheiro, não drogas, que seu crime não foi tão
grave quanto parece.
O que ela recebe, porém, em resposta de sua mãe é “Você era lésbica?”,
seguido de um “E ainda é?”, de seu irmão, e um “Tem certeza?”, de seu noivo. As
próximas falas também giram ao redor do fato de Piper ter uma ex-namorada.
Aqui, pudemos notar um silenciamento por parte de Piper, pois ela nunca havia
mencionado a seus familiares o fato de já ter, um dia, namorado uma mulher. O
silenciamento, para Orlandi (2007, p. 31), é uma forma de dizer, pois ele traz
sentidos, mesmo não ditos. Nas palavras dessa autora “O silêncio é. Ele significa.
Ou melhor: no silêncio, o sentido é”.
Ao omitir essa parte de sua vida, Piper queria, possivelmente, evitar os
comentários que escutou, todos transcritos no primeiro trecho, comentários esses
negativos sobre o fato, mas que, ao final do trecho, são rebatidos por Piper, em
sua última fala: “A questão, vovó, é que eu não tava interessada no dinheiro”. Se
analisarmos a figura 1, podemos perceber a cara de decepção de todos os
presentes na sala, e chegar a três possíveis sentidos: a decepção é causada pela
prisão em si ou é causada pelo fato de Piper já ter sido lésbica ou ainda a junção
das duas coisas (porém, pelo discurso apresentado, que envolve apenas falas
relacionadas à antiga relação amorosa de Piper, provavelmente o segundo sentido
construído é o que mais aponta ao relatado). Nessa análise apontamos duas
filiações de sentidos, em relação à homoafetividade/homossexualidade: uma
relacionada a não aprovação social de seu relacionamento, principalmente
presente no discurso imagético da Figura 1. Assim, tal discurso pode remeter, até
mesm, ao crime por ela cometido, algo presente na fala de seu noivo Larry, ao
proferir “(...) a amante lésbica que era traficante internacional”. Em contrapartida,
outra filiação de sentido, relacionada ao aspecto passional, foi por nós identificada
na fala de Piper, quando seu discurso remete ao fato de estava com Alex (sua ex-
namorada), porque a amava e cometeu tal crime por isso.
Ainda em relação ao primeiro trecho, discursivamente levantamos
novamente a antecipação de Piper ao silenciar o fato de já ter tido uma namorada,
pois Piper se colocou no lugar das pessoas que não compreenderiam suas escolhas
afetivas e isso é muito comum. Muitos discursos de ódio são proliferados, quase
que todos os dias, por diversos meios de comunicação, sejam eles virtuais ou
pessoais e isso é notável no dia-a-dia. Analisando historicamente o fato, relações
homoafetivas eram vistas como algo abominável, as pessoas que se relacionavam