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ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 271 -291, set./dez. 2018.
http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
Representações midiáticas de corpo, gênero
e sexualidade uma análise da série Orange
Is The New Black
RESUMO
Tainá Cordova Schlösser
tainaschlosser@gmail.com
orcid.org/0000-0001-6010-1039
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Curitiba, Paraná, Brasil
Patricia Barbosa Pereira
patriciapereira@ufpr.br
orcid.org/0000-0002-2984-2872
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
Curitiba, Paraná, Brasil
As mídias atravessam, definem e perfazem nossas interações cotidianas. Na escola isto não
tem sido diferente. No entanto, por falta de apropriação teórico-prática e pouca visibilidade
didática, alguns artefatos midiáticos, quando associados ao aspecto pedagógico, podem ser
generalizados negativamente como vilões e causadores da indisciplina. Partindo dessas
ideias, bem como de nossas vivências no âmbito escolar, juntamente com a assunção de
alguns assuntos polêmicos/tabus em discursos que circulam na atualidade, o presente
artigo trará a análise de trechos da série estadunidense “Orange Is The New Black”,
acessada com frequência por jovens e adolescentes em idade escolar. Para tal, faremos uso
da Análise de Discurso francesa (AD), com a intenção de discutir como os temas sexualidade,
corpo e gênero são representados na rie, além de analisarmos como essas representações
podem influenciar na construção de sentidos acerca de tais temas. Buscaremos verificar,
também, se existe a possibilidade de se aprender com as mídias no escopo do Ensino de
Ciências, em uma abordagem mais contextualizada quanto à educação sexual. A série
apresenta conteúdos sociais, os quais podem ser discutidos em sala de aula para o estudo
de temas transversais, principalmente em relação à educação sexual e no que diz respeito
aos temas sexualidade, corpo e gênero, em uma alternativa à abordagem biológica-
higienista, a partir de outros aspectos como os direitos humanos e sexuais.
PALAVRAS-CHAVE: Mídias. Sexualidade, Corpo e Gênero. Educação Sexual. Análise de
Discurso.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 271 -291, mai./ago. 2018.
INTRODUÇÃO
O avanço das tecnologias se reflete no comportamento de toda a sociedade.
Um dos desdobramentos dessa mudança está no crescente número de crianças e
adolescentes, a chamada “Geração Net” ou “Geração Y”, que ao invés de saírem
para brincar, praticar esportes ou até mesmo socializar com outras pessoas de
mesma idade, preferem fazê-los por intermédio de tecnologias. Reeves (2008)
caracteriza a “Geração Net”, que o possui faixa etária definida, por sempre estar
conectada a computadores, celulares e tablets - jogando online, vendo séries,
desenhos, filmes e se relacionando virtualmente, tanto com pessoas conhecidas,
quanto desconhecidas. Estudos trazem as consequências de se ficar online 24
horas por dia. Dentre elas estão: a diminuição do contato social físico, pois este é
substituído pelas redes sociais; o grande aumento de doenças psicológicas através
do cyberbullying; além de doenças físicas, que também estão na lista, como
problemas de coluna, de visão e o sobrepeso (GAMBARDELLA; BISMARCK-NASI,
2000). Assim, percebe-se uma preocupação de se tratar tais problemas e entender
como eles poderão afetar essa geração quando adulta.
Outro avanço se relaciona aos conteúdos presentes nas mídias, que são
consequentes dessa expansão e aprimoramento tecnológico e aqui cabem todas
elas, desde as sociais até as televisivas. Nesses espaços, assuntos ditos tabus o
transmitidos e discutidos. Porém, em tal contexto, alguns pontos importantes a
serem levantados são: que tipo de conteúdo tais mídias abordam? E, em relação à
veracidade de tais conteúdos, qual é a atenção dada pelos produtores de novelas
e filmes, por exemplo, ao destinarem o foco a tais assuntos? Como, afinal, esses
conteúdos podem influenciar a vida de jovens e adolescentes? Como eles podem
interpretar o que é veiculado, diariamente, pelas mídias?
O presente artigo visa discutir, por meio da Análise de Discurso da linha
francesa (AD), como os conteúdos midiáticos representam os temas: sexualidade,
corpo e gênero, e como sua abordagem interfere/influencia na construção de
sentidos que apontem para esses temas. Tais temáticas são tratadas de diversas
formas, por diversos meios de comunicação, como revistas, jornais, novelas, filmes
e séries. Embora não adolescentes e jovens sejam influenciados por esses
discursos, se ater às formas como esse público está aprendendo parece ser um
ponto importante, no sentido de assegurar a qualidade de formação, diante de
tantas fragilidades, intolerâncias e retrocessos que se disseminam em nossa
sociedade. Em consonância com Ramos (2006), percebemos, também, a
importância de tratar os dois assuntos de forma conjunta, atrelados à educação,
pois as mídias também propiciam formas de aprendizado significativo.
Perceber a crescente procura por séries, principalmente por jovens e
adolescentes, traz a necessidade de um olhar mais atento para as possibilidades
de apropriação cultural promovidas pelas mídias. Tal necessidade está vinculada a
constituição de identidades culturais locais daqueles que estão em formação e,
além do que, estarão exercendo sua liberdade de expressão, difundindo, através
de redes sociais, em ambientes formais ou informais, os conceitos e ideias
“absorvidos”. Por isso, em consonância com Bévort e Belloni (2009) destacamos a
importância de uma atenção para as mídias, bem como sua apropriação crítica e
criativa, a partir da noção de mídia-educação que:
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é parte essencial dos processos de socialização das novas gerações, mas não
apenas, pois deve incluir também populações adultas, numa concepção de
educação ao longo da vida. Trata-se de um elemento essencial dos processos
de produção, reprodução e transmissão da cultura, pois as mídias fazem parte
da cultura contemporânea e nela desempenham papéis cada vez mais
importantes, sua apropriação crítica e criativa, sendo, pois, imprescindível
para o exercício da cidadania. (BÉVORT; BELLONI, 2009, p. 1083).
Nas disciplinas presentes na Educação Básica em contexto brasileiro, não
existe uma responsável por tratar de sexualidade, corpo e gênero, mas, segundo
as bases curriculares, tanto nacional quanto estadual, especificada a
importância de tratá-los, transversalmente, em todas as áreas do conhecimento.
No entanto, quando lançamos um olhar mais minucioso para as propostas
curriculares e até mesmo para os conteúdos dos livros didáticos, que
inegavelmente ainda são ferramentas que perpassam e auxiliam a prática docente,
as abordagens desses temas se limitam às áreas de Ciências e Biologia. Nesse
sentido, outra questão a ser levantada: como são, corriqueiramente, feitas
essas abordagens? Furlani (2008) incentiva a repensar essas abordagens que têm
se realizado de maneira normatizadora, determinista, excludente e biologizante.
Nos cursos de licenciatura, a ausência de uma discussão mais ampla também tem
se repetido e a tendência, em especial no curso de Biologia, que é de onde falamos,
é de uma abordagem anatômico-fisiológica, sem enfoque para relações
socioculturais, que são a base para o entendimento amplo das questões de
sexualidade, corpo e gênero.
Alguns meios nos quais os temas serão tratados em sala de aula, em busca
de abordagens que contemplem a relação desses temas na realidade dos alunos,
são também apresentados nas bases curriculares, bem como na metodologia CTS
(Ciência, Tecnologia e Sociedade). Nesse sentido, acreditamos que essas sejam
formas positivas de motivar e chamar a atenção do aluno durante as aulas
ministradas, o que proporciona uma melhor qualidade de seu aprendizado, em
especial a metodologia CTS, por se tratar de uma abordagem que parte de
assuntos presentes em seu cotidiano. Talvez pensar nos artefatos midiáticos,
especialmente as séries, como voltados apenas para o lazer, ou algo que não pode
trazer qualquer tipo de aprendizado significativo, não seja mais a questão, o que
se deve fazer agora é buscar nessas séries formas e espaços de incentivar e
enriquecer as discussões em sala de aula.
Tudo a nossa volta tem significado e, por consequência, traz um
aprendizado. Para entendermos o mundo a nossa volta, necessitamos
compreender os diversos significados das diversidades que nos cercam. Nesse
caminho, torna-se necessária uma busca de aprendizados para além dos muros da
escola. Em outras palavras, é necessário entender que muitos conhecimentos
envolvidos em tudo que faz parte do nosso cotidiano, e que eles estão
entrelaçados com o que se é aprendido/trabalhado dentro do ambiente escolar.
Desde o Ensino Fundamental, os conhecimentos gerais nos são ensinados
em forma de “matérias escolares”, historicamente construídas e legitimadas
(FERREIRA; SELLES, 2003), as quais são tratadas por blocos e dificilmente são
integradas. Essa falta de integração, relacionada a um modus operandi de
organização de conhecimento, não reflete a vida em suas facetas. Quando o
assunto são as mídias e seus produtos, então, é mais que clara a falta de reflexo
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do mundo integrado na compartimentalização e disciplinarização dos
conhecimentos escolares.
É um processo evidente que, aos poucos, as tecnologias, e falamos aqui
especificamente das mídias, vão ganhando o espaço escolar. Porém, infelizmente,
elas não são exploradas de formas mais amplas, pois ainda parecem presentes as
dificuldades que professores enfrentam na realização de apropriações e propostas
didáticas que fujam de práticas tradicionais de ensino. Assim, nesse trabalho
propomos aprofundar a discussão das mídias que se inserem no cotidiano dos
jovens e adolescentes, cujos produtos trazem diversos conceitos sobre assuntos,
muitas vezes, não explorados das formas nas quais deveriam. É fato que o que é
veiculado nas mídias tem uma pedagogia própria, pois gera aprendizados
significativos sobre assuntos diversos, inclusive sobre os corpos, comportamentos
e condutas. Por que, então, não utilizar pedagogicamente aquilo que é tão atrativo
aos alunos? É, de certa forma, um retrocesso não conectar Educação em Ciências
e as mídias, visto que elas estão presentes de modo tão significativo em nossas
vidas.
Da mesma forma que os artefatos e conteúdos midiáticos podem ensinar,
também podem confundir. Nesse sentido, se encontra a importância de os
processos de ensino-aprendizagem articularem conteúdos a serem trabalhados
em sala de aula, ao que é divulgado na televisão e/ou na internet. Contextualização
e discussão constantes são fundamentais. Por serem temas contemporâneos -
sexualidade, corpo e gênero, suas abordagens se dão das mais diversas formas nos
diversos meios supracitados, muito acessados pelos jovens e adolescentes em
formação. Isso agrega maior relevância para que esses sejam estudados e
analisados, a fim de se tornarem ferramentas de ensino-aprendizagem na
formação de jovens e adolescentes. Os próprios professores de Biologia e Ciências
também ganham, pois poderão explorar os conteúdos conceituais para além de
seus enfoques essencialmente biológicos, anatômicos e fisiológicos, abordando-os
amplamente a partir de seus aspectos sociais.
CAMINHOS METODOLÓGICOS
Neste artigo nosso objetivo geral é trazer uma análise de como artefatos
midiáticos populares entre jovens e adolescentes influenciam na construção de
sentidos sobre sexualidade, corpo e gênero por esse público, a fim de
compreendermos alguns possíveis discursos sobre tais temas. Vale ressaltar aqui
que o presente artigo se trata de um pequeno recorte de uma outra pesquisa, mais
ampla. Assim, nossas análises foram realizadas a partir da delimitação de um
corpus. De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2008):
nas ciências humanas e sociais mais particularmente, corpus designa o
conjunto de dados que servem de base para a descrição e análise de um
fenômeno. Nesse sentido, a questão da constituição do corpus é
determinante para a pesquisa, pois trata-se de, a partir de um conjunto
fechado e parcial, analisar um fenômeno mais vasto que essa amostra.
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 137)
Para tanto, primeiramente, se fez necessária a escolha de um artefato
midiático para pré-análise de delimitação desse corpus. Assim, optamos pelas
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séries, frequentemente acessadas pelo público alvo. A crescente popularidade do
site Netflix, um canal pelo qual diversas séries, desenhos e filmes são
disponibilizados, por um preço bem acessível por mês, torna a popularidade desse
tipo de artefato ainda maior. A série escolhida foi uma estadunidense, a qual está
em alta, com indicações ao Emmy - um outro tipo de premiação, semelhante ao
oscar, mas que premeia as demais mídias televisivas - e se trata de uma série
original Netflix. Dessa forma, a pesquisa foi feita no próprio site original da série.
A série em questão se intitula Orange Is The New Black”, hoje com cinco
temporadas e eleita, por muitos sites e blogs, como uma das melhores dez séries
dos últimos tempos, o que confirma seu título de popularidade (além de pesquisas
sobre audiência, como uma publicada em uma matéria no site Uol, neste ano, que
mostra a série em sexto lugar
1
). Além de ser bem conhecida, sua classificação
etária é para maiores de 16 anos, logo, ela se enquadra no público alvo desta
pesquisa. Outro ponto, muito crucial, é o fato de que a série aborda muitos temas
considerados como polêmicos/tabus, que estão intimamente relacionados aos
temas do presente artigo (sexualidade, corpo e gênero).
A série possui muito conteúdo em suas cinco temporadas, porém, o recorte
e delimitação do corpus para esse artigo envolve somente a primeira temporada,
por ser suficiente e conter todos os temas a serem trabalhados a partir da AD,
em busca das possibilidades de construções de sentidos a partir de seu discurso.
Todos os trechos cujos sentidos, em nossa leitura, se filiam a sexualidade, corpo
ou gênero foram transcritos, fidedignamente, para posterior análise. Ao total,
noventa e sete trechos foram transcritos, dos treze episódios que compõem a
primeira temporada.
Para fins de análise, tais trechos foram agrupados nos temas sexualidade,
corpo e gênero, com o intuito de condensar o trabalho e também buscar
semelhanças ou diferenças nos discursos apresentados em diferentes momentos,
por diferentes personagens. Portanto, os trechos foram cruzados para essas
análises. Por se tratar apenas de um recorte de um trabalho maior, que traz a
análise de outros trechos do total identificado, o presente artigo contará com um
trecho somente, dentre todos que foram classificados, com sentidos que se filiam
à sexualidade, corpo e gênero. Ou seja, serão analisados três trechos, dentro da
totalidade (noventa e sete), um sobre corpo, outro sobre gênero e, por fim, um
sobre sexualidade.
Como possibilidade teórico-analítica para estudar os processos de
construção de sentidos acerca dos temas sexualidade, corpo e gênero, como
citado ao decorrer do texto, a AD será o principal referencial desta pesquisa. Assim,
a AD parte da ideia de que os sentidos são produzidos durante um discurso, o qual
não existe sem um locutor, que por sua vez é um sujeito histórico (ORLANDI, 2003).
Logo, a AD será usada para a análise, por se tratar de uma análise de sentidos
construídos e constituídos em um discurso, o qual está inserido em um contexto
sócio-histórico repleto de ideologias, que também devem ser levados em
consideração. Tais pontos devem ser levados em consideração, principalmente ao
se analisar uma mídia, visto que o próprio termo é bastante polissêmico, ou seja,
possibilita diversas construções de sentidos e significados. A esse respeito, o
simples fato de mais de uma pessoa construir uma notícia, no caso de um
telejornal, por exemplo, já carrega/agrega vários sentidos, desde a fonte, de quem
apresentou o fato, passando pela equipe responsável por montar as notícias, até
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 3, p. 271 -291, mai./ago. 2018.
chegar a quem vai apresentá-la. Aí, o sentido inicial não é o mesmo, visto que
são pessoas diferentes, que fazem parte de contextos sociais distintos e, até
mesmo, com ideologias divergentes (RAMOS, 2006). Partindo dessas duas ideias
principais, o presente artigo foi redigido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Neste artigo, dos noventa e sete trechos transcritos da primeira temporada
da série Orange Is The New Black, apenas três foram trazidos para fins de análise.
Além desses trechos, captura de tela de algumas cenas, que são cruciais para
análises complementares,