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ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 133-153, mai./ago. 2018.
http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
Sentidos de aula de física para o ensino
médio no discurso de licenciandos
RESUMO
Dayvid Bruno Fernandes da Silva
f_dayvid@yahoo.com
orcid.org/0000-0003-2544-5930
Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Campinas, São Paulo, Brasil
Fernanda Cátia Bozelli
fernandaboz@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9985-1475
Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Ilha Solteira, São Paulo, Brasil
As concepções de aula de sica de docentes dessa disciplina podem ser questionáveis e,
muitas vezes, dissonantes dos documentos oficiais e das pesquisas na área de Ensino de
Física. Isto posto, busca-se responder à seguinte pergunta: quais os sentidos de aula de
Física para o Ensino Médio no discurso de licenciandos de uma universidade pública do
estado de São Paulo?” Para responder à essa pergunta, formou-se um grupo focal
constituído por licenciandos em Física, no tema Aula de Física no Ensino Médio. Registrou-
se o encontro em áudio e vídeo e estes registros foram posteriormente transcritos para
auxiliar a análise dos discursos sob a égide do referencial de Michel Pêcheux. Os sentidos
interpretados por meio da análise apontam para a concepção, por parte dos licenciandos,
de que a aula de Física para o Ensino Médio deve se constituir em uma mera aplicação da
Matemática. A disciplina, desse modo, não se relacionaria à vida cotidiana dos alunos e não
requereria metodologias de aula que fujam do conteudismo e da memorização de equações
e regras.
PALAVRAS-CHAVE: Licenciandos. Discurso. Sentidos. Aula de física. Ensino médio.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 2, p. 133-153, mai./ago. 2018.
INTRODUÇÃO
É comum haver aulas de Física no Ensino Médio que se baseiam
majoritariamente em memorizações de regras, equações e leis sem haver
discussões mais substanciais nessa disciplina, com professores que creem que
basta conhecer conteúdos de Física para lecionar essa disciplina naquele nível de
escolarização. Nessa mesma perspectiva, é assinalado pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Médio no Brasil (PCN)
que o ensino das ciências tem-se realizado frequentemente mediante a
apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada,
distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas
também por isso, vazios de significado. (BRASIL, 1999, p. 22).
Da mesma forma, o Currículo de Ciências da Natureza e suas Tecnologias do
Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2012, p.15) defende a fuga da estagnação em
modelos arcaicos de aula: “Hoje, mais do que nunca, as transformações
tecnológicas podem atropelar o trabalho de uma escola que se cristaliza em
‘modelos’ estanques”.
As Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN+) (BRASIL, 2002) elencam competências a serem desenvolvidas nas
escolas para preparar os alunos à prática da cidadania. Entre essas competências
estão a utilização de diferentes linguagens e a prática da leitura e da escrita. No
âmbito da aula de Física, O PCN+ (BRASIL, 2002, p. 61, grifos nosso) traz a
prerrogativa de que a Física
procura resolver problemas e prever acontecimentos, isto é, ensina-se física,
no ensino médio, para preparar o aluno para lidar com situações reais de
crises de energia, problemas ambientais, manuais de aparelhos, concepção
de universo, exames médicos, notícias de jornal e assim por diante.
Dessa forma, é razoável dizer que, também é possível desfrutar de outras
áreas do conhecimento em aulas de Física. Como a própria LDB (BRASIL, 1998)
exorta, é importante utilizar-se de diferentes tipos de textos como, por exemplo,
os citados manuais, exames médicos e textos jornalísticos.
É recomendado ainda que haja uma integração cultural e social nas aulas, com
o objetivo de desenvolver competências e habilidades para o exercício da
cidadania (BRASIL, 2002), pois a escola também deve respaldar o desenvolvimento
de atitudes, valores e interesses humanistas e sociais (LEMKE, 1990; JUNIOR, 2002;
LIBÂNEO, 2002). Lemke (1990) considera as ciências como linguagens conceituais
específicas e, para que os alunos possam se apropriar dessas linguagens, eles
precisam falar, ler e escrever utilizando conceitos científicos em diferentes
contextos.
Quando o físico norte-americano Richard P. Feynman (um dos pioneiros da
eletrodinâmica-quântica e prêmio Nobel de Física de 1965) visitou o Brasil na
década de 1950 para lecionar no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de
Janeiro, ficou surpreso com o tipo de ensino por memorização mecânica que era
aplicado, em vez de raciocínio lógico. E decepcionado com a pouca relação que se
faz entre a Física ensinada nas aulas e o mundo cotidiano dos alunos (JÚNIOR,
2002). Pajares (1992) e Barros (1999) apontam que, em aulas desse tipo, resta aos
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alunos decorarem fórmulas para conseguirem notas nas provas e serem aprovados
ao término do ano letivo, enquanto que, as discussões em Física se tornam
anêmicas. Ricardo e Freire (2007) asseveram que, dessa forma, a maior parte dos
alunos termina o Ensino Médio pensando que Física e Matemática são a mesma
coisa ou que Física é uma aplicação daquela outra.
Ademais, esse tipo de aula de Física pode estar ligado a aspectos referentes à
formação docente (VILLANI, 1984; RICARDO; FREIRE, 2007; TARDIFF, 2010). Villani
(1984) alerta sobre o escamoteamento que a Física sofre desde seu berço, entre
os cientistas, até chegar às salas de aula. Segundo Carvalho e Gil-Pérez (2006, p.
10), “não basta estruturar cuidadosa e fundamentadamente um currículo se o
professor não receber um preparo adequado para aplicá-lo”. Além disso, os
mesmos autores explicam que, quando licenciandos são questionados sobre sua
própria prática, eles não têm consciência de suas deficiências como docentes e
apresentam falas reducionistas que “não incluem muitos conhecimentos que a
pesquisa destaca como fundamentais (CARVALHO; GIL-PÉREZ, 2006, p. 14). Os
mesmos autores citam Briscoe (1991, p. 10), expondo que há
aspectos mais raramente levados em consideração, embora [...] essenciais: o
conhecimento das concepções espontâneas dos docentes (cujo papel na
formação do professor é tanto ou mais relevante que o das concepções
espontâneas dos alunos em sua aprendizagem).
Assim, uma vez que as compreensões de professores de Física em formação
inicial sobre aula de Física para o ensino Médio podem ser diversas, é importante
investigar como compreendem a aula de Física para o Ensino. Essas divergências
se dão pois, de acordo com Pêcheux (1975, apud BRANDÃO, 2002, p. 145),
se uma palavra, expressão, proposição podem receber sentidos diferentes
[...] conforme refiram a tal ou tal formação discursiva, [...] elas não têm um
sentido que lhes seria “próprio” enquanto ligado à sua literalidade, mas seu
sentido se constitui em cada formação discursiva, nas relações que entretêm
com outras palavras, expressões proposições da mesma formação discursiva.
Então, os sentidos (BRANDÃO, 2002; ORLANDI, 2003) de aula de Física para o
Ensino Médio de licenciandos podem variar de acordo com diferentes fatores,
como as suas formações iniciais, seus estágios supervisionados, as teorias
educacionais às quais foram expostos, a educação básica que receberam (o que
inclui os professores que tiveram), entre outros aspectos. Nessa perspectiva,
Tardiff (2010) afirma que os licenciandos sofrem diversas influências desde muito
antes da decisão por uma licenciatura.
Dessa forma, levantou-se o seguinte questionamento: quais os sentidos de
aula de Física para o Ensino Médio no discurso de licenciandos?” Foram então
traçados alguns objetivos: i) formar grupos focais com licenciandos em Física de
diferentes seriações de sua graduação; ii) investigar o discurso desses licenciandos
em Física por meio de Análise de Discurso Francesa, de Michel Pêcheux e iii)
analisar quais são as vozes que influenciam seus discursos; iv) contribuir, por meio
dos resultados desta pesquisa, com a áreas de Linguagem no ensino de Física e de
formação inicial de professores em Física.
Neste artigo, serão privilegiados os dois primeiros tópicos acima
mencionados, tomando como sujeitos de pesquisa os ingressantes de uma
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licenciatura em Física de uma universidade pública do estado de São Paulo. Em
próximos artigos serão trazidas análises de discursos de licenciandos de outras
seriações.
ALGUNS PRINCÍPIOS DA ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA DE MICHEL PÊCHEUX
Uma vez que pretende-se estudar discursos, a teoria da Análise de Discurso
Francesa, de Michel Pêcheux, desempenha fundamental importância. Por esse
referencial teórico, entende-se a Língua além dos limites de suas regras
gramaticais e sintáticas, como um produto social, histórico e cultural:
a Análise de Discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema
abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com
homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de
suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma
determinada forma de sociedade (ORLANDI, 2003, p.16).
Isso quer dizer que, mais que um código para comunicar informações, a Língua
é concebida como um acontecimento histórico e social. Orlandi (2003) entende o
conceito de discurso como sendo a língua em funcionamento e produzindo
sentidos entre sujeitos. Afirma também que nenhum discurso é fechado e
autônomo, estando circunscrito em um contexto social, político e histórico
específicos e sendo influenciado por outros discursos. No desenrolar de suas
ideias, Pêcheux apregoa que “os processos discursivos constituem a fonte da
produção dos efeitos de sentido no discurso e a língua é o lugar material em que
se realizam os efeitos de sentido” (BRANDÃO, 2002, p.35). Uma vez que o processo
discursivo é o alicerce da produção de sentidos, é no próprio discurso que vêm à
luz os próprios sentidos, fundamentados por ideologias.
O conceito de ideologia pode ser entendido como uma forma de compreender
e interagir com o meio. Além disso, a ideologia é norteadora das relações sociais e
pode ser considerada um fragmento da realidade de quem fala (BRANDÃO 2002,
ORLANDI 2003). Brandão (2002) explica que essa prorrogativa deixa de lado o
entendimento da ideologia como uma falsificação do meio, entendendo-a como
uma forma de pensar o mundo, como produção de sentidos por meio de signos e
materializada no discurso.
Orlandi (2003) elucida que a ideologia se materializa no discurso, assim como
o discurso se materializa na fala, apontando a importância dos conceitos de
formação ideológica e formação discursiva. A mesma autora expende que, pelo
processo de assujeitamento, os indivíduos são interpelados por ideologias e se
tornam sujeitos, passando a ocupar, inconscientemente, seus lugares em certas
formações discursivas. Nesse processo os sujeitos pensam ser donos de suas
próprias ideologias, quando, na verdade, foram socialmente talhados por elas. Tais
posições discursivas dialogam umas com as outras seja por confrontos, alianças ou
relação de dominação. Diz-se então que essas posições ideológicas, com maneiras
diferentes de interpretar o mundo e seus signos, é que de fato constituem a
formação ideológica (BRANDÃO, 2002). Então, uma vez que o discurso é uma
materialidade da ideologia, todo discurso será dominado pela formação
ideológica.
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A formação discursiva, por sua vez, ditará aquilo que deve ou não ser dito,
preservando discursos anteriores, sempre na busca de uma linha limítrofe para seu
domínio discursivo. A esse movimento dá-se o nome de paráfrase e, de maneiras
diferentes, se profere sempre o mesmo. Assim, a formação discursiva condiciona
os ditos dos sujeitos que compreendem o mundo pelo arsenal ideológico. Todavia,
é pela polissemia que esses limites se expandem e se apoderam de novos usos de
ditos anteriores (BRANDÃO, 2002). É por isso que na análise de uma produção
discursiva, deve-se sempre levar em conta aquilo que já está fixo, o interdiscurso,
e o que está em transformação, intradiscurso.
Mas, um mesmo signo pode produzir diferentes sentidos em função do
contexto no qual está significando. Orlandi (2003) explica que, este contexto é
chamado de condição de produção, que compreende
fundamentalmente os sujeitos e a situação. [...] Podemos considerar as
condições de produção em sentido estrito e temos as circunstâncias de
enunciação: é o contexto imediato. E se as considerarmos em sentido amplo,
as condições de produção incluem o contexto sócio-histórico, ideológico
(ORLANDI, 2003, p. 30).
Esse tipo de entendimento é que deu origem à Análise de Discurso, uma vez
que há diferentes formas de estudar a língua: “Na análise de discurso, procura-se
compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do
trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (ORLANDI, 2003,
p.15).
Dessa forma, a mesma palavra pode produzir diferentes sentidos em
diferentes ocasiões, épocas e locais. Por seu caráter polissêmico e por ser produto
social e hisrico é que a língua não é considerada neutra e inocente, à medida que
também sempre possui interesses dos sujeitos. Por conseguinte, manobras
discursivas que atendem a essas finalidades. Um enunciador está sempre em uma
formação imaginária da qual fala em seu contexto de produção. Em outras
palavras, ele sempre fala, vestindo, o que chamo aqui, máscara social: o
enunciador pode falar como mãe, como pai ou filho, como estudante ou professor,
como amigo, patrão ou funcionário. Os discursos dessas diferentes formações
imaginárias seguirão regras específicas de acordo com suas condições de
produção. Além disso, ao emitir um discurso, um enunciador pode também
presumir a formação imaginária de quem o escuta e modelar o seu discurso. À vista
disso, os sujeitos usam também o mecanismo de antecipação, que prevê os
sentidos que seu interlocutor terá de seu discurso.
É justamente por essas manobras que, ao enunciar um determinado discurso,
o sujeito, na verdade, traz sentidos implícitos abaixo da superfície textual de seu
dito. Por exemplo, em uma segunda- feira de manhã, um empregado, insatisfeito
com seu serviço, pode dizer, ao chegar à empresa: Como estou animado em
trabalhar aqui!”. Na verdade, este dito possui um não-dito, um dizer implícito: de
fato, o sujeito pode estar dizendo que está desanimado em trabalhar naquele
lugar. Igualmente, os discursos estão sendo manipulados a fim de, por diversos
motivos, produzirem outros sentidos. Da mesma forma, até mesmo um breve
silêncio pode significar algo.
Assim, é função do analista descortinar os discursos, revelando os sentidos e
ideologias por meio dos signos (que podem ser palavras), que não são
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transparentes em sua forma de significar. É justamente por tais prerrogativas da
Análise de Discurso Francesa de Michel Pêcheux, que essa teoria foi escolhida para
essa pesquisa, pois a medida que, por meio da fala pode-se chegar ao discurso, aos
sentidos produzidos por sujeitos discursivos, essa teoria também pode beneficiar
os interesses desse trabalho investigativo.
METODOLOGIA
Esta investigação baseou-se em uma metodologia qualitativa de pesquisa
(BOGDAN; BIKLEN, 1994; FLICK, 2002). Uma vez que esse trabalho ainda está em
andamento, foram selecionados ingressantes de um curso de licenciatura em Física
de uma universidade estadual paulista, pois ainda possuíam pouco contato com os
discursos da área de Ensino de Física, quando comparados a outras seriações do
mesmo curso. O convite aos licenciandos ocorreu de maneira presencial em sala
de aula pelo primeiro autor desse artigo. Sete alunos se voluntariaram para
participarem da pesquisa. Nessa mesma oportunidade, foram anotados os nomes
e contatos de celular dos voluntários, que foram congregados em um grupo em
aplicativo de celular de mensagens instantâneas para futuras informações sobre a
pesquisa. Na oportunidade do convite, o pesquisador apresentou aos alunos, de
maneira superficial, o tema, a metodologia de constituição de dados e a
importância da pesquisa para o Ensino de Física e formação de professores.
O método de constituição de dados escolhido foi o de grupo focal (GATTI,
2005) e o moderador do grupo foi o primeiro autor deste artigo. É importante
ressaltar que o moderador teve o papel de propiciar aos participantes uma
oportunidade de debate sobre o tema aula de Física no Ensino Médio, respeitando
sempre o princípio da não-diretividade, não apresentando opiniões próprias
durante as discussões (GATTI, 2005). O grupo focal foi registrado em áudio e vídeo
no objetivo de ampliar as oportunidades de análise.
Dessa forma, utilizando um aplicativo de mensagens para célula, junto aos
participantes, uma data e um horário foram escolhidos para o encontro, que
ocorreu em uma sala de reuniões na própria universidade. O grupo focal durou
aproximadamente duas horas e aconteceu em um horário noturno em que os
participantes não estavam em aula. No intuito de preservar suas identidades, estes
licenciandos receberam aqui nomes fictícios, que estão dispostos na Tabela 1. As
informações dessa tabela se relacionam com o esquema da Figura 1 que, por sua
vez, apresenta a organização da sala na qual ocorreu o encontro.