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ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 167-183, jan./abr. 2018.
http://periodicos.utfpr.edu.br/actio
Uma forma de espanto pensando uma
aula de química com o seriado televisivo
Breaking Bad
RESUMO
Bruna Adriane Fary
fary.bruna@gmail.com
orcid.org/0000-0002-2382-6572
Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Londrina, Paraná, Brasil
Moisés Alves de Oliveira
moises@uel.br
orcid.org/0000-0003-0102-9385
Universidade Estadual de Londrina (UEL),
Londrina, Paraná, Brasil
O presente trabalho analisa, pelo viés da etnografia virtual, uma aula de química no seriado
televisivo Breaking Bad (2008). A análise tem como foco de interesse discutir como a
química pode ser pensada por uma ótica cultural, isto é, enxergando a ciência como
resultado das relações humanas e não como um conhecimento imutável, essencializado.
Nesse sentido, buscamos criar espantos com o ensino de química que emerge dentro do
primeiro episódio do seriado televisivo, que aborda uma aula sobre “o que é química” e
realizar desdobramentos desse episódio para um ensino que preze por alunos
experimentadores e criadores de suas próprias práticas educacionais. Os resultados da
etnografia virtual que realizamos, nos mostraram que a crença em uma essência universal
e, também, a possibilidade que as palavras oferecem para que possamos enunciar a
verdade de alguma essência, das ciências, em especial da “química”, transformam a
linguagem que utilizamos em uma espécie de metafísica átomo, energia, elétron ,
constituindo a base da fabricação do conhecimento científico. A maneira como a aula de
química é conduzida nesse recorte do episódio, presta reverência a uma química
estratificada, que parece não se vascularizar no coletivo, nos desejos dos alunos e, portanto,
o silêncio, dos discentes, pode ser uma forma de resistência.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de química. Etnografia virtual. Mídia televisiva.
ACTIO, Curitiba, v. 3, n. 1, p.167-183, jan./abr. 2018.
INTRODUÇÃO
É lugar comum pensar que a filosofia emerge do espanto. Mas como pensa
educação, o ensino de química a partir do espanto? E por que o espanto? Porque
é um sentimento de admiração que experimentamos quando estamos diante de
situações, acontecimentos que fazem surgir interrogações. O espanto emerge da
interrogação, do desconforto, do desassossego, onde o que pensamos conhecer
pode não passar de uma ilusão. Desse modo, espantar-se com a educação, com o
ensino de química, é suscitar questões que se renovem constantemente,
encarando o mundo, a educação, a ciência como uma eterna novidade,
transvalorando e resistindo aos preceitos do presente.
Nesse sentido, espantar-se com o ensino de química é prezar por práticas
experimentadoras e criadoras. Assim, pensar o ensino de química sob o signo do
espanto, sem defender que a ciência seja superior em relação a outras áreas de
conhecimento, é reconhecer que ela é uma construção humana permeada por
vários espaços, que incluem instâncias políticas, econômicas e sociais.
Deleuze (1988, p.54) provoca a pensar que “nada aprendemos com aquele
que nos diz: faça como eu. Nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem faça
comigo”, ou seja, aprendemos quando experimentamos, na ação. Nesse sentido,
esse trabalho pretende olhar para um recorte do seriado televisivo Breaking Bad
(2008) e criar espantos com a aula de química que o professor Walter White
oferece aos seus alunos. Escolhemos essa mídia televisiva por conter elementos
científicos/químicos em seu enredo, narrando a história de um professor de
química que recebe a notícia que está com câncer de pulmão e resolve produzir
mentanfetamina com um ex-aluno, Jesse Pinkman.
O recorte de cena selecionado do seriado televisivo, mostra uma aula onde o
professor White questiona seus alunos sobre “química é o estudo do quê?”. White,
professor de química do ensino médio, aparece em sala de aula perguntando o que
é química. A sala possui uma boa estrutura, com bancadas acopladas, vidrarias,
mas os alunos são retratados como desinteressados, deitados sobre as carteiras,
distraídos. No episódio os alunos não experimentam a química, o professor White
não os convida a fazer a aula com ele.
Pretende-se então, a partir desse recorte de cena, pensar e discutir a
educação, o ensino de química, uma aula de química, a escola, uma educação
menor, no sentido de não se apegar a um discurso totalitário, mas uma educação
marginal, movida pelo desejo, pela criação e participação ativa dos alunos.
Indo ao encontro do texto de Marlucy Alves Paraíso, com o título: “Currículo-
nômade: quando os devires fazem a diferença proliferar”, a autora nos provoca a
pensar um currículo nômade, lugar dos encontros improváveis, dos
agenciamentos, do desejo, atento às sensações, às necessidades das minorias.
Minorias que são multidões em devir, que não tem modelos pré-estabelecidos
para serem ensinados. Ainda no campo educacional, Corazza (2002, p. 13) coloca
que “somente por meio da loucura exaltada do pensamento, a imaginação
educacional poderá traçar o seu próprio plano de imanência e criar seus
personagens, enquanto a invenção conceitual instaura a sua festa”. Nesse sentido,
pensar em uma educação que resiste ao presente e se lança à deriva no mar da
criação. Um ensino de ciências que permita os alunos e alunas experimentarem e
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criarem seus conhecimentos e sensações, uma vez que a ciência, junto com a arte
e a filosofia, por exemplo, possui a potência para criação.
A ciência está em constantes transformações, o que pressupõe aceitá-la como
processo contingente. Para caracterizar a ciência como “processo contingente”,
segundo Stengers (2002), não basta falar na existência contingente de sociedades,
consentir a respeito da autonomia das comunidades científicas, ou falar em
evolução da ciência por seus paradigmas, como fez Thomas Kuhn em seus estudos
sobre ciência. Pois, a contingência estaria no advento de um processo que a partir
do momento em que encontrou a oportunidade de estrear, ganhou necessidade
própria. Portanto, é necessário ir além, re-inventar novos motivos de espanto para
poder singularizar a ciência e consequentemente o ensino de ciências/química.
Isabelle Stengers em seu livro “A invenção das ciências modernas” (2002),
pensa a ciência em duas perspectivas, uma em que a ciência de forma semelhante
à política, trava suas lutas por poder, com ânsia de agregar aliados, buscando se
reafirmar para garantir autonomia e visibilidade; e outra, a ciência moderna como
uma construção “singular”, pois sabe se reinventar a cada problema, a cada
necessidade. É nisto que reside sua singularidade. A autora ainda investe contra o
ideal de uma ciência pura, olhando para a ciência como um projeto social nem mais
universal ou racional do que qualquer outro conhecimento.
Stengers arquiteta suas análises criticando certas visões epistemológicas do
início do século passado que buscavam colocar a ciência num lugar privilegiado de
“verdade”. Dessa forma, ela reinterpreta alguns conceitos como singularidade,
acontecimento e fornece à noção de produção de novos espaços, novos
acontecimentos, novas explicações, não imutáveis, o universais, novos espantos
diante da ciência.
Realizando o espanto, assim como os filósofos realizam em seu experimentar
a filosofia, Bergson mostra a dependência recíproca entre filosofia e ciência, onde
a filosofia precisa da ciência para comunicar-se e desenvolver o seu conteúdo.
Trevisan (1995) em seu livro “Bergson e a Educação”, aponta que as ciências tem
a tendência de tornar a realidade estática, mostrando também, a crítica que
Bergson faz ao ensino de ciências que muitas vezes refere-se à excessiva ênfase
dada ao ensino científico, em detrimento de outros aspectos da educação” (p.156).
Outro vício apontado é que o ensino de ciências é articulado, muitas vezes, sob
uma forma dogmática, em que o professor anuncia resultados prontos, ensina
certezas, produtos finais da ciência. Trevisan, ainda em Bergson, diz que a ordem
deveria ser inversa, onde o aluno deveria ser orientado, provocado a decifrar a
observação e através da experimentação descobrir ele mesmo a ciência” (idem,
p.157) para que a aprendizagem não se torne apenas um falso verniz de
conhecimentos”.
Stengers (2002) ainda aponta que aprender é resistir com humor, onde seja
possível perceber que muitas maneiras de contar história das ciências e ensiná-
las.
Desse modo, criamos espantos, abrindo para processos reflexivos, bem como
práticas didáticas, com o ensino de química retratado em um episódio de um
seriado televisivo, que aborda uma aula sobre “o que é química”. Realizamos
desdobramentos, ou seja, algumas discussões do episódio para um ensino que
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preze por alunos experimentadores e criadores de suas próprias práticas
educacionais, utilizando de apoio metodológico a etnografia virtual.
CAMINHOS METODOLÓGICOS UMA ETNOGRAFIA VIRTUAL
Para analisar as relações e significados químicos que vão se forjando no
decorrer do episódio observado, percorremos os caminhos de etnógrafos,
inserindo-nos no mundo do seriado de televisão. Estudando, por um tempo, as
relações, atividades e significados que são construídos entre os participantes dos
processos sociais desse “mundo”, em que somos simultaneamente estranhos e
nativos, cercados pela cultura da série e estudando-a para entender seu
funcionamento, sem deixar, como diz Hine (2004 p.13) de manter a distância
necessária para dar conta de um olhar que contemple os nexos que (re)produzem
a especificidade da cultura química. A etnografia tem seu fundamento na noção de
observação participante. Nas situações em que o pesquisador está face a face com
seu objeto de pesquisa, uma observação não-participante nem mesmo faz sentido
para a noção antropológica tradicional. Mas quando o pesquisador o está
presente fisicamente no local de sua observação? Seria possível aprender a cultura
de um grupo estando ausente fisicamente? Uma observação não-participante
seria possível?
Essas questões passaram a fazer sentido na contemporânea teorização de
base na Nova Sociologia da Educação, acoplada aos novos mapas culturais
emergentes no interior das mídias e tecnologias. Nesse nível, a questão da
virtualidade surge como importante elemento simbólico de novos projetos
culturais e sociais e produzem novos significados.
O que nos separa do local da pesquisa é uma tela. Uma tela de televisão ou
monitor do computador, mídias digitais a serem assistidas, o que é uma maneira
muito peculiar de participação e observação, pois acabamos nos tornando
invisíveis, ou melhor, ver sem sermos vistos, ou ainda, vistos de uma forma bem
peculiar. Desse modo, não interferimos na dinâmica da interação entre
participantes das produções sociais. Não um ser etnógrafo causando
estranhamento no local de pesquisa. Portanto, é essa participação quase invisível
no “mundo” da série que viabilizará a apreensão de aspectos de sua cultura, o que
possibilitará a elaboração posterior da escrita, detalhada compreensão dos
significados que são compartilhados pelos membros da série e a rede de
significação que se estabelece (BRAGA, 2007 p.6).
Essa condição de “invisibilidade”, de observadores “não-participantes”, de
“não-estranhos, decorre de um caráter virtual de pesquisa, pois para realizar as
análises temos facilmente acesso aos dados de campo, uma vez que eles podem
ser gravados, salvos e revisitados a qualquer momento, quantas vezes forem
necessárias. Tem-se a possibilidade de coletar uma grande quantidade de
informações em um curto período de tempo, sem custo algum, a não ser o da
energia elétrica para ligar e manter o funcionamento do monitor do computador
ou da tela da televisão.
Com a flexibilidade dos sistemas de comunicação, podemos ter acesso à séries
televisivas com o uso do computador. Podemos ter acesso também através da
televisão, do celular e outras mídias. Considerando a interface entre comunicação,